Sunday, November 14, 2004

"Yellow cake"

Aconteceu nos anos da década de 1980, não sei precisar exatamente qual, mas certamente foi antes de 1985. Numa manhã, muito cedo, acordei com batidas severas na janela da sala, que dava para o exterior. Eu morava num sobrado de vila, um oásis de tranqüilidade na loucura de São Paulo. Desci e tive uma surpresa, era um amigo recente. Na verdade tínhamos pouca intimidade, ele estivera em casa uma vez, aliás, foi quando nos conhecemos pessoalmente, embora eu já o conhecesse de nome. Naquela ocasião ele chegou na companhia de um amigo, depois disso eu e minha mulher fomos à casa dele uma vez. O visitante matutino era o jornalista Hamilton Almeida Filho que os mais íntimos chamavam de HAF, iniciais do nome que acabaram virando apelido. Abri a porta, com cara de sono e pedi que entrasse. Ele olhou atentamente para a entrada da vila, entrou, sentou-se depois de colocar uma pasta repleta de papéis na mesa de centro e disse querendo tirar um pouco do inusitado da situação: - Passei para tomar um café, dizem que nesta casa toma-se um dos melhores cafés da cidade, estou aqui para conferir. Dito isto caminhou até a janela e olhou através da persiana, como que verificando a segurança do lugar. Fui para a cozinha colocar água no fogo e depois até o banheiro fazer a natural drenagem matinal. Depois do café, percebi estar sem cigarros, ele fumava também, mas tinha apenas dois cigarros no maço. Pedi que ficasse esperando, eu iria até a padaria comprar. Ele pediu para que eu trouxesse um maço de Hollywood, eu fumava Charm. Na padaria, no quiosque dos cigarros, notei que era observado com atenção, policiais sempre são fáceis de identificar, na porta da padaria outros três estavam num Monza estacionado. Por precaução comprei dois maços de Charm, seis pãezinhos e duzentos gramas de queijo prato. Quando retornei para casa notei que havia na entrada da vila outro carro suspeito estacionado, com quatro caras que se não fossem tiras estavam perdendo tempo, tinham todos os cacoetes. Acendeu-se a luz de alarme em minha cabeça. Por precaução, ao chegar em casa levantei a persiana da janela, assim quem entrasse na vila poderia ver o que acontecia na minha casa, mas pelas condições de luz, muito mais intensa fora do que dentro, eu veria antes, além do quê, para saber o que de fato estava acontecendo a pessoa teria de se aproximar da janela e isso quase nunca acontecia, pois o carro ficava estacionado de tal forma que era mais fácil chegar pelo lado da porta. Hamilton já tinha percebido que eu tinha notado alguma coisa fora do comum e resolveu abrir o jogo. Jornalista do tipo investigativo, tinha feito carreira desde muito jovem, foi uma espécie de menino prodígio das redações. Com poucas conversas dava para notar que se tratava de alguém muito inteligente e perspicaz, além de ser um espírito inquieto, sempre em busca de alguma coisa nova. Infelizmente morreu cedo, ainda na fase de grande produtividade. No final da década de 70, o jornalista Alexandre Baumgarten desapareceu depois de ser visto saindo para uma pescaria. Dias depois seu corpo foi encontrado. Ele fora baleado. Dono da revista "O Cruzeiro" e ligado ao esquema do general Medeiros que pleiteava a presidência, tinha acumulado inimigos de alto calibre. O acusado pela morte era o general Newton Cruz, chefe do SNI e membro seleto da corte de Figueiredo, então presidente da República. Hamilton que estava formalmente desempregado, resolveu fazer uma investigação sobre os fatos e depois vender a matéria para algum órgão de imprensa. Durante semanas investigou e como conseqüência acabou investigado. Ele havia descoberto alguma coisa que os poderosos de então não queriam que viesse à tona. Na noite anterior saiu de casa, tomou um táxi para o centro, entrou num hotel da Boca do Luxo e passou a noite escrevendo. De manhã tomou outro táxi, deixou a máquina de escrever em casa e notou que estava sendo seguido. Na avenida Santo Amaro os perseguidores foram apanhados num sinal que fechou abruptamente. Ele teve tempo de ir até a minha casa que era próxima. Os tiras sabiam que ele estava por perto, não sabiam onde. Quando saí da padaria, logo após comprar cigarros, eles perguntaram ao dono quem eu era e o que fazia. Ele me contou dias depois, não desconfiava que eu fosse jornalista, ainda bem. Enfim, Hamilton estava esperando a manhã terminar para entregar o material nas mãos do Mino Carta, na revista Isto É. Depois de entregue estaria livre de constrangimentos, os militares sabiam que não haveria perdão se fizessem outra besteira no estilo Wlado Herzog. Dessa forma, entre um cigarro e outro, tomamos um bule de café e passamos a manhã conversando, até que saí para buscar o jornal e percebi que estava tudo limpo. Ainda assim Hamilton foi no meu carro, abaixado, até a praça Panamericana, onde tomou um táxi e desapareceu. O material que ele escreveu tinha o título de "Yellow Cake", e era uma confusão danada que não consegui entender direito, aliás, ninguém entendeu, apenas deu para saber que houve um assassinato nunca devidamente esclarecido. Tornei a encontrar o Hamilton duas ou três vezes, antes que ele falecesse. Sempre penso o que teria acontecido se eu tivesse pedido um maço de Charm e outro de Hollywood. Será que os tiras sabiam que ele fumava Hollywood? Estaria eu agora escrevendo estas linhas ou teria desaparecido? Nunca saberei.

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